Valci Melo
No dia 18 de maio de 2018, a Câmara Municipal de São José da Tapera, Sertão
Alagoano, aprovou um projeto de lei que ameaça o direito à liberdade de ensino
e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, princípios educacionais
garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Na
iminência de uma greve por tempo indeterminado, devido ao segundo ano
consecutivo sem reajuste salarial, os trabalhadores da educação foram
surpreendidos com a aprovação relâmpago – e por unanimidade
– de um projeto de lei que insere no âmbito da educação de São José da Tapera
algumas das inconstitucionais propostas do famigerado Programa Escola “Sem”
Partido[1].
Aproveitando o dia em
que se celebra o Combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e
adolescentes, a Câmara de Vereadores aprovou o Projeto de Lei nº 002/2018, enganosamente
denominado Infância sem Pornografia, o qual inclui, entre suas pérolas:
- O direito dos pais a que os filhos “recebam a educação moral e religiosa que esteja de acordo com suas convicções” (art. 2º, § 1º);
- A exigência de que o material didático-pedagógico que impacte sobre a formação moral dos estudantes seja previamente apresentado aos pais (art. 2º, § 2º);
- A proibição de conteúdos julgados “impróprios” ao desenvolvimento psicológico das crianças e adolescentes, incluindo-se aí o próprio livro didático (art. 3º, § 1º).
Ora, a primeira questão
a ser destacada, independentemente do mérito do projeto, refere-se à
competência legislativa para tratar das diretrizes educacionais. Como se pode
acompanhar nos debates nacionais acerca do Programa Escola “Sem” Partido,
inspiração direta da lei aprovada hoje em São José da Tapera, esse tipo de lei
não pode ser aprovado na esfera municipal ou estadual, uma vez que compete à
União, mesmo que em colaboração com os entes federados, o estabelecimento das
diretrizes educacionais, conforme estabelece o artigo 9º, inciso IV, da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB, Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Esse tem sido o posicionamento do Ministério Público Federal – MPF e da
Advocacia-Geral da União – AGU[2],
quando da discussão acerca de leis desse tipo aprovadas em municípios ou
estados. Ou seja, parece que nossos vereadores não aprenderam nada com um caso
tão próximo que foi o similar Projeto Escola Livre, aprovado em 2016 pela
Assembleia Legislativa de Alagoas, e considerado inconstitucional em liminar do
ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Luis Roberto Barroso[3].
Quanto ao conteúdo do
projeto aprovado pela Câmara de São José da Tapera, diga-se, de passagem,
copiado na íntegra da Câmara Municipal de Ribeirão Preto[4],
parece-nos que, embora se proponha a tratar de educação, os legisladores
“esqueceram-se” tanto de consultar o capítulo que a Constituição Federal de
1988 dedica a esse direito social, como também de levar em consideração o que
determina a legislação mais importante sobre o tema, que é a LDB 9.394/96. Digo
esqueceram entre aspas porque não se trata de esquecimento, e sim, de má
intenção mesmo, pois não há base alguma na Constituição e na LDB para a proposição
desse tipo de matéria legislativa. Assim, referir-se ao tratamento da educação
nessas leis seria fundamentar a própria inconstitucionalidade do projeto.
Mas já que eles
“esqueceram”, relembremos aos legisladores municipais que a mesma Constituição
que permite o Ensino Religioso nas escolas (art. 209, § 1º), cuja matrícula é
facultativa, estabelece que a atividade didático-pedagógica deve se dar baseada,
entre outros, nos princípios da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, inciso II) e no “pluralismo
de ideias e de concepções pedagógicas” (art. 206, III[5]).
Ou seja, proporcionar aos estudantes, filhos de pais católico-cristãos ou
cristão-evangélicos, o conhecimento da religiosidade afro-brasileira e indígena
certamente pode ser visto por eles como educação moral e religiosa em desacordo
com “as suas convicções”, mas vetar tal conhecimento, além de ferir a liberdade
de ensino e o direito à aprendizagem, garantidos pela Constituição, vai contra
a proibição de proselitismo religioso assegurada pela LDB 9.394/96, em seu
artigo 33[6].
Além desse atentado ao
pluralismo de ideias e a liberdade de ensino, o artigo 2º, § 1º do referido
projeto cria uma situação insustentável na relação pedagógica ao confundir o
direito e o dever dos pais de educarem seus filhos com um suposto direito deles
de imporem à escola o que pode ou não ensinar aos estudantes. Ora, com isso, se
os pais são religiosos podem sentir-se ofendidos com o ensino da teoria da
evolução das espécies e reivindicarem, agora, o ensino do criacionismo, por
exemplo. Mais que isso: o Projeto de Lei 002/2018 cria uma situação na qual um
pai católico tem o direito de interferir no trabalho do professor, caso fique
sabendo que a escola abordou determinadas questões relacionadas aos evangélicos
que ele julgue afronta às suas convicções religiosas.
Quanto às
questões relacionadas à pornografia, que diz ser o foco do projeto, o artigo
3º, § 2º do texto destaca o seguinte: “considera-se
pornográfico ou obsceno áudio, vídeo, imagem, desenho ou texto escrito ou lido
cujo conteúdo descreva ou contenha palavrões, imagem erótica ou de órgãos
genitais, de relação sexual ou de ato libidinoso”.
Ora, mesmo
que o projeto, imediatamente após essa discutível definição de pornografia,
abra uma ressalva, destacando que “a
apresentação científico-biológica de informações sobre o ser humano e seu
sistema reprodutivo é permitida, respeitada a idade apropriada”, ficam as
perguntas: quem decidirá sobre essa idade apropriada? Se uma imagem, texto ou
áudio é considerado pornográfico pelo simples fato de representar visualmente os
órgãos genitais ou fazer referência a eles, como serão as aulas de reprodução
humana? A definição de quando e como determinado conteúdo pode/deve ser
ensinado obedecerá aos critérios científicos ou aos achismos dos pais que, com
todo o respeito, não estudaram para o exercício dessa tarefa?
Essa mesma reflexão
vale para a exigência de que o material didático pedagógico que incida sobre a
formação moral dos estudantes seja previamente apresentado aos pais (art. 2º, §
2º). Vejamos: um material didático-pedagógico como o livro didático é elaborado
por especialistas no assunto, submetido ao Ministério da Educação – MEC, via
edital de seleção e, antes de chegar às escolas, é avaliado por outros
especialistas que aprovam ou não a sua utilização, com base em um conjunto de
critérios relacionados ao respeito à legislação. Mas, de acordo com a lei
aprovada pelos vereadores, nada disso conta, desde que os pais julguem o
material inapropriado para os filhos, seja por questões de idade, seja por ir contra
as suas convicções morais ou religiosas (art. 3º, § 1º).
Diante do exposto,
defendo que, além de inconstitucional, o referido projeto de lei aprovado pela
Câmara Municipal de São José da Tapera se constitui em um forte atentado ao
livre e plural exercício da prática didático-pedagógica. Uma matéria como essa
deveria, no mínimo, ser discutida amplamente pela sociedade, inclusive, pelos
trabalhadores em educação, que são aqueles que estão no dia a dia da sala de
aula e sabem como esse “mini mundo” funciona.
Neste sentido, na
condição de professor efetivo da rede municipal de São José da Tapera e filiado
ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas – SINTEAL, venho
publicamente cobrar do núcleo municipal da referida entidade que providências
legais sejam tomadas no sentido de inviabilizar o prosseguimento desse projeto
que é um verdadeiro atentado à educação.
Não ao obscurantismo!
Não ao proselitismo religioso! Por uma educação pública, gratuita, laica,
plural e sem restrições à liberdade de ensino do conhecimento científico,
filosófico e artístico.
[1] Projeto de Lei do Senado n° 193, de 2016, de autoria do senador Magno Malta, que acusa os professores brasileiros de doutrinação à esquerda e propõe o direito dos pais de interferirem no que a escola pode ou não ensina aos seus filhos, de acordo com as suas convicções morais e religiosas. Os interessados podem consultar o texto inicial e o processo de tramitação e: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125666.
[2] Ver matéria recentemente
publicada sobre o assunto em:
gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2018/05/agu-diz-ao-stf-que-projeto-da-escola-livre-criado-em-al-e-inconstitucional_54141.php.
[3] O texto da liminar pode ser
consultado em: https://www.conjur.com.br/dl/liminar-suspende-lei-alagoas-criou.pdf.
[4] A íntegra do projeto pode ser
consultada abaixo de uma entrevista sobre o mesmo no site: http://reaconaria.org/colunas/marcelocentenaro/projeto-infancia-sem-pornografia-aprovado-em-ribeirao-preto/.
Também está disponível online ofício do Sindicato
dos Servidores Municipais de Ribeirão Preto, Guatapará e Pradopólis destacando
a inconstitucionalidade da lei: http://municipais.org.br/images/uploads/Of%C3%ADcio.pdf.
[5] Conferir em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/2002/L10406.htm.
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