O acerto de contas
“Viver é isso: ficar se equilibrando o
tempo todo, entre escolhas e consequências.”
Jean-Paul Sartre
Recuperado,
Jó retornou a sua casa, mas nada era mais como antes. Sua esposa, seus filhos,
seus compadres, enfim, quem não o acusava seguramente como assassino,
alimentava sérias dúvidas acerca do seu envolvimento com Angélica e com a morte
dos irmãos Ferreira.
Jó não
sabia distinguir o que era pior: se a acusação daqueles que descaradamente o
evitava ou a frieza dos que não conseguiam acreditar na sua total inocência.
Diferentemente de antes, conseguia se colocar no lugar das pessoas e imaginar o
quanto era difícil para elas acreditarem nele. Às vezes, até ele mesmo duvidava
se realmente não tinha alguma responsabilidade no assassinato dos irmãos
Ferreira: “Será que aquela discussão no bar do Zé da Pinga não teria exposto
demais os rapazes? Tinha muita gente observando e quem garante que os bandidos
não ouviram nossa briga e colocaram uma tocaia?”
Mas também
não descartava outras hipóteses: “Angélica estava muito angustiada com a
possibilidade de Manoel espalhar o rumor de que traia o marido... Será que ela
teve coragem de mandar matá-los para se proteger? Não! Aquela dali era anjo em
pessoa: seria incapaz de fazer uma coisa dessas! Deve ter sido o Severino
mesmo, com raiva pelo prejuízo que levou... Ou foi seu Raimundo? Quem sabe pode
ter sido até alguém que ninguém imagina...”
Vez ou
outra, Jó se punha a pensar no que viu e ouviu no sonho e o quanto aquilo
conseguiu mexeu com a sua vida. Já não tinha certeza se deveria ou não batizar
o Moisés, se existia céu ou inferno fora da Terra, se haveria vida após a
morte... Mas de uma coisa tinha convicção: não queria que a sua vida acabasse
com a morte. Por isso, precisava conduzi-la de modo diferente do que fizera até
então. Não sabia muito bem por onde começar, mas tinha consciência de que a
partir dali deveria regrar-se pelo amor ao próximo como a si mesmo.
Na
dúvida acerca da real existência da vida após a morte, resolveu arriscar: a
partir de então seria um novo homem. Se existir a eternidade, iria para o céu.
Caso contrário, ao menos, daria sua contribuição para fazer desta vida um
paraíso e deixaria boas recordações para os que ficassem e/ou viessem depois.
Disposto
a mudar de vida, resolveu começar pela correção da injustiça que cometeu com seus
sogros. “Vou pedir perdão pelo que fiz com eles, convencê-los de que não sou
assassino, elucidar o que realmente existiu entre mim e a Angélica e
convidá-los para serem os padrinhos do Moisés. Depois, darei um grande banquete
para toda a população, ocasião em que tornarei público o conteúdo do meu sonho
e esclarecerei esses boatos a meu respeito. Mesmo que ninguém acredite em mim,
ficarei ao menos com a consciência tranquila por ter deixado tudo às claras”.
Numa
manhã nublada de sábado, o sétimo dia da semana, Jó resolveu dar o primeiro
passo: ir à casa dos sogros. Laura queria ir junto, mas ele recusou a
companhia: queria ter uma conversa a sós com os pais dela.
Montou
em seu cavalo e saiu anunciado a quem encontrava pelo caminho que em breve
estaria dando um banquete e fazia muito gosto em ter todos por lá.
Ao
vê-lo se aproximar, seu Joaquim e dona Leonarda não acreditavam que aquilo
estava ocorrendo.
- É
muito desaforo! – esbravejava a mãe de Laura. – Depois de tudo o que aconteceu
esse bandido ainda tem a coragem de colocar os pés no que é nosso! Aí já é demais!...
- Aqui
ele não entra! – garantia seu Joaquim. – E se insistir não respondo por mim...
- Oh
de casa! Oh de casa!
- Aqui
você não é bem vindo, assassino! - gritou dona Leonarda antes mesmo que ele
desmontasse.
- Fora
daqui, cabra! Não ouse cruzar o nosso batente se quiser sair andando com suas
próprias pernas! – ameaçou seu Joaquim.
- Pelo
amor de Deus! - solicitou Jó. - Só quero conversar com você...
- Não
temos nada para conversar com você! – respondeu dona Leonarda. – Pra gente
chega! Você já nos fez sofrer demais!
- Eu
errei muito com vocês, é verdade, mas não matei os meninos nem trai o João
Pedro. Por favor, eu imploro; deixe-me explicar tudo o que estão comentando...
- Não confiamos numa só palavra que venha de
você, Jó. Não perca seu tempo! – esclareceu seu Joaquim. - Você pode enganar
qualquer pessoa, menos a gente. Agora desapareça da minha porta senão vou ser
obrigado a descarregar isso aqui no seu lombo! – concluiu seu Joaquim apontando
a espingarda já engatilhada para Jó.
- Sei
que não é fácil para vocês acreditarem em mim nem esquecer o mal que fiz
durante esses anos todos. Mas deixem-me ao menos falar. Sou uma nova pessoa,
por isso, imploro que ao menos ouçam o que tenho a dizer.
- Eu
não queria me desgraçar com você, bandido, mas vou ser obrigado... – exclamou
seu Joaquim acertando Jó nas costas com um tiro de espingarda enquanto ele
descia do cavalo.
Em
seguida, o velho abriu a porta e saiu para conferir se o infeliz estava realmente
morto.
- Só
peço que me perdoem! – sussurrou Jó agonizando.
Seu
Joaquim torceu o rosto e saiu à procura de um portador para avisar a família
que viesse recolher o corpo.
A vida “eterna”...
“De todas as
coisas seguras, a mais segura é a dúvida.”
Bertolt Brecht
Depois que morreu, Jó continuo a viver. E talvez continue
por muitos e muitos anos. Pois, se para alguns, ficou apenas a imagem
arrepiante de um bandido, de um mau caráter, e para outros, somente a dúvida se
tudo não tinha realmente passado de um sonho, de um infeliz pesadelo, para a
maioria das pessoas ele foi elevado à condição de mártir e idealizado como
herói. Para estas, a última impressão prevaleceu e se foi responsável pela
morte dos irmãos Ferreira ou não, isso já não importava tanto. Bastava saber
que, quando morreu, estava verdadeiramente disposto a ser uma nova pessoa... E
arriscavam até um ousado palpite: “Quem sabe se estivesse vivo não estaria, de
fato, contribuindo para a construção de um mundo melhor...”
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* Capítulos 23 a 24 do romance O SONHO DA CONVERSÃO cuja publicação se deu aqui e no Portal http://www.escritoresalagoanos.com.br/texto/6141.
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