O SONHO DA CONVERSÃO (Parte 7 - final)*



O acerto de contas

“Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências.
Jean-Paul Sartre

Recuperado, Jó retornou a sua casa, mas nada era mais como antes. Sua esposa, seus filhos, seus compadres, enfim, quem não o acusava seguramente como assassino, alimentava sérias dúvidas acerca do seu envolvimento com Angélica e com a morte dos irmãos Ferreira.
Jó não sabia distinguir o que era pior: se a acusação daqueles que descaradamente o evitava ou a frieza dos que não conseguiam acreditar na sua total inocência. Diferentemente de antes, conseguia se colocar no lugar das pessoas e imaginar o quanto era difícil para elas acreditarem nele. Às vezes, até ele mesmo duvidava se realmente não tinha alguma responsabilidade no assassinato dos irmãos Ferreira: “Será que aquela discussão no bar do Zé da Pinga não teria exposto demais os rapazes? Tinha muita gente observando e quem garante que os bandidos não ouviram nossa briga e colocaram uma tocaia?”
Mas também não descartava outras hipóteses: “Angélica estava muito angustiada com a possibilidade de Manoel espalhar o rumor de que traia o marido... Será que ela teve coragem de mandar matá-los para se proteger? Não! Aquela dali era anjo em pessoa: seria incapaz de fazer uma coisa dessas! Deve ter sido o Severino mesmo, com raiva pelo prejuízo que levou... Ou foi seu Raimundo? Quem sabe pode ter sido até alguém que ninguém imagina...”
Vez ou outra, Jó se punha a pensar no que viu e ouviu no sonho e o quanto aquilo conseguiu mexeu com a sua vida. Já não tinha certeza se deveria ou não batizar o Moisés, se existia céu ou inferno fora da Terra, se haveria vida após a morte... Mas de uma coisa tinha convicção: não queria que a sua vida acabasse com a morte. Por isso, precisava conduzi-la de modo diferente do que fizera até então. Não sabia muito bem por onde começar, mas tinha consciência de que a partir dali deveria regrar-se pelo amor ao próximo como a si mesmo.
Na dúvida acerca da real existência da vida após a morte, resolveu arriscar: a partir de então seria um novo homem. Se existir a eternidade, iria para o céu. Caso contrário, ao menos, daria sua contribuição para fazer desta vida um paraíso e deixaria boas recordações para os que ficassem e/ou viessem depois.
Disposto a mudar de vida, resolveu começar pela correção da injustiça que cometeu com seus sogros. “Vou pedir perdão pelo que fiz com eles, convencê-los de que não sou assassino, elucidar o que realmente existiu entre mim e a Angélica e convidá-los para serem os padrinhos do Moisés. Depois, darei um grande banquete para toda a população, ocasião em que tornarei público o conteúdo do meu sonho e esclarecerei esses boatos a meu respeito. Mesmo que ninguém acredite em mim, ficarei ao menos com a consciência tranquila por ter deixado tudo às claras”.
Numa manhã nublada de sábado, o sétimo dia da semana, Jó resolveu dar o primeiro passo: ir à casa dos sogros. Laura queria ir junto, mas ele recusou a companhia: queria ter uma conversa a sós com os pais dela.
Montou em seu cavalo e saiu anunciado a quem encontrava pelo caminho que em breve estaria dando um banquete e fazia muito gosto em ter todos por lá.
Ao vê-lo se aproximar, seu Joaquim e dona Leonarda não acreditavam que aquilo estava ocorrendo.
- É muito desaforo! – esbravejava a mãe de Laura. – Depois de tudo o que aconteceu esse bandido ainda tem a coragem de colocar os pés no que é nosso! Aí já é demais!...
- Aqui ele não entra! – garantia seu Joaquim. – E se insistir não respondo por mim...
- Oh de casa! Oh de casa!
- Aqui você não é bem vindo, assassino! - gritou dona Leonarda antes mesmo que ele desmontasse.
- Fora daqui, cabra! Não ouse cruzar o nosso batente se quiser sair andando com suas próprias pernas! – ameaçou seu Joaquim.
- Pelo amor de Deus! - solicitou Jó. - Só quero conversar com você...
- Não temos nada para conversar com você! – respondeu dona Leonarda. – Pra gente chega! Você já nos fez sofrer demais!
- Eu errei muito com vocês, é verdade, mas não matei os meninos nem trai o João Pedro. Por favor, eu imploro; deixe-me explicar tudo o que estão comentando...
 - Não confiamos numa só palavra que venha de você, Jó. Não perca seu tempo! – esclareceu seu Joaquim. - Você pode enganar qualquer pessoa, menos a gente. Agora desapareça da minha porta senão vou ser obrigado a descarregar isso aqui no seu lombo! – concluiu seu Joaquim apontando a espingarda já engatilhada para Jó.
- Sei que não é fácil para vocês acreditarem em mim nem esquecer o mal que fiz durante esses anos todos. Mas deixem-me ao menos falar. Sou uma nova pessoa, por isso, imploro que ao menos ouçam o que tenho a dizer.
- Eu não queria me desgraçar com você, bandido, mas vou ser obrigado... – exclamou seu Joaquim acertando Jó nas costas com um tiro de espingarda enquanto ele descia do cavalo.
Em seguida, o velho abriu a porta e saiu para conferir se o infeliz estava realmente morto.
- Só peço que me perdoem! – sussurrou Jó agonizando.
Seu Joaquim torceu o rosto e saiu à procura de um portador para avisar a família que viesse recolher o corpo.

A vida “eterna”...

“De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida.”
Bertolt Brecht

            Depois que morreu, Jó continuo a viver. E talvez continue por muitos e muitos anos. Pois, se para alguns, ficou apenas a imagem arrepiante de um bandido, de um mau caráter, e para outros, somente a dúvida se tudo não tinha realmente passado de um sonho, de um infeliz pesadelo, para a maioria das pessoas ele foi elevado à condição de mártir e idealizado como herói. Para estas, a última impressão prevaleceu e se foi responsável pela morte dos irmãos Ferreira ou não, isso já não importava tanto. Bastava saber que, quando morreu, estava verdadeiramente disposto a ser uma nova pessoa... E arriscavam até um ousado palpite: “Quem sabe se estivesse vivo não estaria, de fato, contribuindo para a construção de um mundo melhor...”

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*  Capítulos 23 a 24 do romance O SONHO DA CONVERSÃO cuja publicação se deu aqui e no Portal http://www.escritoresalagoanos.com.br/texto/6141.

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